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quinta-feira, 24 de março de 2022

PERDOEM-ME, MAS A LEITURA É OBRIGATÓRIA.



"Se todo mundo sempre mente para você, a consequência não é que você acredite nas mentiras, mas sim que ninguém mais acredite em nada."

Hannah Arendt

Escreveu Eugênio Bucci:

Para autocratas, com Putin e outros, há algo mais valioso do que fazer com que as pessoas acreditem neles: este algo de mais valioso é fazer com que as pessoas não acreditem em mais nada e em mais ninguém. Resumida assim, a fórmula parece um contrassenso. Como afinal um tirano pode arregimentar apoio popular, senão faz por merecer a confiança irrestrita das multidões ?

Antes de responder, lembremos que nós aqui no Brasil, conhecemos de perto esse tipo de mando.

Olhemos para o nosso País e vamos entender o contrassenso.

Não temos aqui, nos trópicos, um sósia perfeito de Vladimir Putin, mas é inegável que anda nestas terras um personagem que almeja virar Putin quando crescer.

Pois então: como é que esses sujeitos agregam seguidores ?

Agora a resposta é fácil. Eles não ganham corações selvagens e mentes turvas porque se apresentem como cidadãos confiáveis, íntegros e de boa fé. Definitivamente não é assim que se apresentam.

Eles mentem, e não precisam esconder que mentem. Eles mentem, todo mundo sabe que eles mentem, mas como sua mentiras - às vezes cínicas, às vezes perversas - ostentam um potencial destruidor, é com eles mesmos que as falanges ressentidas cerram fileiras.

Líderes como Putin (e seus imitadores) não precisam ser dignos de crédito irrestrito. Eles não precisam construir laços baseados na verdade e na honradez da palavra - basta que se mostrem brutais o suficiente para destruir todas as instituições do saber e do conhecimento que florescem na democracia (como a universidade, a ciência, a justiça, as artes e a imprensa), pois como não se cansam de repetir - e nisso seus adoradores acreditam fervorosamente - essas instituições não passam de um amontoado de mentiras.

Mentindo em nome de combater a mentira, eles arrebanham seus fiéis.

Para os tiranos, a prioridade não é conquistar a credulidade dos incautos, mas fazer com o que o maior número de incautos não deposite mais um pingo de confiança em nenhuma instituição da democracia. Vieram para destruir.

Seus apelos mais inflamados repousam não em projetos afirmativos, positivos, construtivos, mas na promessa de devastar qualquer resistência que encontrarem pela frente.

É verdade que esses apelos costumam vir camuflados em retóricas aparentemente edificantes em torno de entidades mágicas como a "Pátria", a "Grande Rússia", "família" ou qualquer Shangri-lá que simbolize idílio ou virtude, mas no fundo, o que leva as sociedades a se entregarem a esses demagogos da força bruta é a paixão por dizimar o que, na democracia, tem parte com a verdade.

É por isso que a indústria da desinformação a serviço dos regimes de força não se envergonha de espalhar falácias e fraudes. Ela não constrói credibilidade em ponto algum, não precisa disso, apenas semeia o descrédito generalizado.

As "fake news" servem exatamente para incinerar as vias de acesso à verdade factual. O próprio conceito de verdade dos fatos vai se perdendo. As correntes de apoio ao presidente da República não falam em fatos, mas apenas em "narrativas". Para elas, a verdade dos fatos não existe, só o que existe são versões.

No credo das milícias virtuais, não há mais diferença entre  juízo de fato e juízo de valor (entre fatos e opiniões). No lugar do pensamento objetivo e do debate racional, quem entra em cena é o fanatismo.

Assim, a indústria da desinformação consegue pouco a pouco, fazer com que, nas palavras de Hannah Arendt, "ninguém mais acredite em nada".

Pronto: aí está o canteiro ideal para que modelos de inspiração fascista venham a florescer.

"Com um povo assim" dizia a filósofa, "você pode, então, fazer o que quiser".

Se o povo se convencer de que todo enunciado que tinha  o estatuto de verdade factual se reduz a impostura e manipulação, aclamará o primeiro maluco facínora que prometer atear fogo em tudo.

Logo, os pregadores das tiranias só precisam produzir confusão e mais confusão. O resto virá como consequência.

Eugênio Bucci

Viver é Perigoso

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