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sábado, 26 de março de 2016

GARRANCHOS E AFINS


Outro dia o meu computador travou. Enquanto estava na manutenção usei um antigo modelo já encostado pela minha filha. No silêncio da noite tive que telefonar-lhe para saber onde ficava o acento circunflexo e  a interrogação. Foi no limite, pois não suportava mais substituir palavras e frases por outras que dispensassem o uso daqueles preciosos sinais.
Saudade das escritas de próprio punho.
Desde o primário, no Rafael Magalhães, na Boa Vista, é claro, quando sentávamos em carteiras duplas, reconhecíamos os colegas pelas letras.
Garranchos com personalidade e sem personalidade. Letras gordinhas, magras e altas e as inevitáveis misturas de letras convencionais com letras de forma. Palavras com as letras juntinhas e também com espaços entre elas, inexplicáveis.
Erros hoje cometidos e facilmente perceptíveis nos textos digitados, muitas vezes não eram notados nas escritas à mão, ou melhor, ofereciam maiores possibilidades para justificativa.
Em Itajubá a vida não era nada fácil para os rapazes, quase sempre relaxados, poucos interessados pela língua pátria.
A desgraça era que todas as jovens, repito, todas as jovens itajubenses, eram normalistas. Ou do Colégio das Freiras ou do Colégio Estadual.
Uma moça, lindíssima por sinal, terminou um namoro após receber um bilhete do namorado com uma sincera declaração de amor. Justificava junto as amigas: Me emocionou o "querida eu te amo", mas com aquela letra, não deu mais.
Eu mesmo, levei um fora por escrito e fiquei vagando por horas, sem destino, com o bilhete nas mãos. Sem ódio e sem raiva. A letra era linda.  
Escritas desenhadas, palavras deslizando pelas folhas, sempre na mesma altura e nada de sobe e desce montanhas quando a folha não era pautada.
Saudade do lacinho na letra ó, quando no final de uma palavra.
Minha mãe, que tinha uma doce, bordada e suave escrita, cansou-se de comprar cadernos de caligrafia no Magazine Fukaiama, também na Boa Vista, é claro. Como modelo, escrevia na linha superior: "O estudo é a luz da vida". Completei dezenas de caderno e de nada adiantou. Garranchos e mais garranchos, atenuados pela personalidade, isto é, garranchos sempre no mesmo estilo.
Um grande amigo, contrariando a tese que letras bonitas era um dom das mulheres, escrevia caprichosamente com naturalidade. Letras emendadinhas e elegantes. A sociedade ginasiana machista e invejosa o olhava com olhos atravessados. Achavam o moço meio esquisito.
Uma pena. O jovem formou-se em medicina, casou e tem um família maravilhosa. Tempos após a sua formatura fui consultá-lo sobre uma dificuldade visual.
Boa consulta e boa conversa. Assustei-me com os garranchos desenhados na prescrição médica. Olhei novamente no papel e olhei para ele. Imaginei que era efeito das pupilas ainda dilatadas.
Antecipando o breque ele falou:
Você compraria um remédio prescrito com a minha letra original ?
Respondi de chofre: Com certeza não !
É a vida...

Viver é Perigoso