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terça-feira, 10 de maio de 2011

NA LIBERDADE

Do José de Souza Martins - Estadão

Na Praça da Liberdade, em São Paulo, entre o totem do metrô e a escadaria que desce para a Estação Liberdade, existiu um dia a forca, até a extinção da pena de morte, em 1874. O que é agora a praça era o morro conhecido como Campo da Forca. Várias ruas do centro, que para lá convergiam, ainda têm o mesmo traçado: a hoje Liberdade, a Galvão Bueno, a Carlos Gomes e a Rodrigo Silva, que foi um dia a Rua da Cadeia, na atual Praça João Mendes. Os padecentes eram levados por ela ao patíbulo. Muita gente entregou a vida ao carrasco naquele canto da praça atual.
Até 1612, a forca se localizara à beira do Rio Tamanduateí, na baixada da Tabatinguera. Em 1721, o governador Rodrigo de Menezes mandou reerguê-la no mesmo lugar de antigamente, pois "matar gente era vício mui antigo nos naturais da cidade de São Paulo e seu distrito". Em 1765, já estava na hoje Praça da Liberdade. É lenda que os padecentes, antes do enforcamento, paravam para rezar na Igreja da Boa Morte. Essa igreja, da esquina da Rua da Tabatinguera, só seria construída em 1802.
A punição não se limitava ao enforcamento. Em 1821, a Câmara pagou ao barbeiro 480 reis para afiar o cutelo destinado a decapitar os condenados ali mesmo, ao pé da forca, cujas cabeças eram colocadas em caixões, em meio alqueire de sal. Os corpos eram sepultados no Cemitério dos Aflitos, na hoje Rua dos Estudantes. Um beco no meio do quarteirão termina na capelinha de Nossa Senhora dos Aflitos, de 1779, que ficava no meio do cemitério e ainda está lá. Nos caixotes, levados por capitães do mato, as cabeças peregrinavam pelas vilas do interior, para escarmento dos povos. Em 1835, as mãos e a cabeça de certo Davi, foram levadas para Sorocaba e, de lá, para Curitiba. Do mesmo modo que em 1821 as cabeças dos escravos José Crioulo e João Congo haviam sido levadas para Campinas, Itu e Porto Feliz.
Na praça ficaram as marcas do enforcamento dos militares Joaquim Cotindiba e Francisco José das Chagas, na tarde de 20 de setembro de 1821. Eles haviam liderado em Santos uma insurreição por falta de pagamento do soldo durante cinco anos! A corda, de barbante trançado, rebentou na hora da execução do Chaguinhas, sinal do reconhecimento divino de sua inocência. Contra o costume, teimou o juiz e fez enforcar o condenado com um laço de couro cru. O sacrilégio teve resposta do povo na colocação de uma cruz no local e na instituição do costume de acender ali velas, em sufrágio das almas do purgatório.
Piedade. À medida que o morro foi sendo aplainado, a cruz foi sendo deslocada até o ponto onde depois se construiria a igrejinha de Santa Cruz dos Enforcados. Não há segunda-feira em que o povo de São Paulo não acorra ao local para essa prática piedosa, mesmo sem saber que é ela um ato político e religioso que já dura quase 200 anos.

José de Souza Martins





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