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domingo, 25 de setembro de 2011

O DESLIZE

Elieser Cesar (247)

— Dimas!
Ninguém respondeu.
— Diiiimaaas!
Afobado e pressuroso como um cãozinho de madame que acaba de ser requestado como um estalo de dedos, o chefe de gabinete abriu a larga porta de madeira enfeitada por um alto relevo representando os orixás.
— Pois, não, excelência.
— Preciso chamar duas vezes, Dimas? — perguntou o governador.
— É que eu... eu estava apertado, excelência...
O governador pigarreou, saboreando o constrangimento do subordinado e o autorizou a sentar-se.
— Então, senhor Dimas, o Salgado já caiu em tentação?
— Ainda não, excelência.
— Como ainda não? — estranhou o governador — Seis meses de governo e nada?
— O homem parece um santo, excelência.
— Santo?! — duvidou o governador — Santo?! Só se for do pau oco, senhor Dimas. Não existem santos, mas virtudes mal testadas.
O chefe de gabinete sorriu, amarelo.
— Mas ele parece imune às safadezas do cargo — deixou escapar o subordinado, logo se arrependendo da inconveniência.
— Safadeza?! — reagiu o governador. — Safadeza, senhor Dimas ?! Esta é uma administração séria. Aqui não existe safadeza. Deslize! Deslize, homem de Deus!
— Foi o que eu quis dizer, com a minha pressa. Perdoe a força de expressão. Deslize, sim senhor. O homem parece imune a deslizes.
O governador aquiesceu, satisfeito com a demonstração de magnanimidade diante do funcionário inferior.
— É isso, mesmo, senhor Dimas. Bom achado. Deslize!
— Obrigado. Obrigado, excelência.
— Mas a expressão foi minha — cobrou o governador.
— Sem dúvida. Meritosa, excelência.
O governador fechou os olhos, por alguns instantes, parecendo elocubrar uma saída para aquela situação incômoda. Por fim, quis saber:
— Como não caiu em tentação? Não lhe facilitamos o caminho, cumulando-o de poderes nas licitações?
— Facilitamos, excelência.
— Eu facilitei. Eu facilitei, não se esqueça, senhor Dimas.
— De fato, o senhor facilitou-lhe o caminho, excelência.
— E então, homem de Deus? Porque o Salgado ainda não caiu em tentação?
Dimas pensou um pouco antes de responder e, depois, julgando-se um expert nas fraquezas humanas, sentenciou:
— Parece que o butim não foi suficiente para despertar-lhe a cobiça, excelência.
— Cobiça que sobra em você, Dimas. O chefe de gabinete soltou um risinho, escabreado.
— Nem tanto. Nem tanto, excelência.
O governador ficou sério, mirou o retrato do seu antecessor, pendurado ao lado do seu próprio quadro em todas as repartições. Aquele, sim, fora seu mestre. Porém, livre das primeiras e decisivas influências, ele seguiu, de vento em popa, carreira solo. Hoje, em nada devia ao professor, aprendera a lição de política e procurava cortar os passos de qualquer outro que lhe ameaçasse a carreira. Afinal, era sempre fácil criar um escândalo nos jornais e afastar o enxerido do caminho.
— Olha, Dimas — disse, saindo do enlevo ególatra —, o Salgado tem que cair em tentação, sim. Você sabe que o segredo do nosso poder é formar bons quadros técnicos e deixar que cometam deslizes, até certo limite. Assim, todos ficam em nossas mãos, manietados, amarrados como cordeirinhos. O segredo é este: permita que deslizem, feche os olhos para as pequenas faltas e eles, pombos manipuláveis, comem na palma da mão. Portanto, temos que instigar a cobiça do Salgado. Sabe como? Sabe como, Dimas?
— Não, excelência. Rogo que me diga, excelência.
O governador demorou de responder, saboreando sua sapiência. O subalterno aguardava em gotejante expectativa.
— Simples. Muito simples, senhor Dimas. Aumentemos o poder dele e frouxemos a fiscalização. Com mais dinheiro em jogo, cairá em tentação. Logo veremos, logo veremos, senhor Dimas.
— Perfeito, governador.
— Excelência...
— Desculpe. Perfeito, genial, excelência!
Assim foi feito. Dobraram, triplicaram, decuplicaram o orçamento sob a responsabilidade do Salgado. Mais seis meses se passaram, um ano, um ano e meio, dois.
— Dimas.
Desta vez, o chefe de gabinete, mais gordo e corado, atendeu ao primeiro chamado. O governador fazia questão de gritar o nome dos subordinados da antessala. Poderia facilmente apertar uma tecla do aparelho telefônico, mas julgava melhor que todos o ouvissem convocando seus auxiliares. Era econômico nos elogios e caprichava nos esporros para que todos pudessem escutar a reprimenda e tremer nas bases – rito do cargo. Afinal, isto é poder. E o poder é para quem sabe exercê-lo com gana e autoridade.
— Sim, excelência.
— Então, o Salgado não caiu em tentação?
— Lamentavelmente não, excelência.
— Então, não tem jeito mesmo?
— O homem é uma rocha de virtude, excelência.
Já com a decisão tomada, havia muitos dias, o governador fingiu pensar, meditar com cautela, enquanto se aprazia com a ansiedade vaporosa do chefe de gabinete.
— Então vamos dinamitar esta rocha, senhor Dimas.
— Como, excelência? Como?
Com os olhos, o governador varreu o gabinete, detendo-se num vaso de porcelana contrabandeado da China. Só depois, concedeu:
— Só há uma saída honrosa, senhor Dimas.
— Qual, excelência? Qual? — suplicou o chefe de gabinete.
— Vamos demitir o Salgado.
— Demitir?! Mas ele é o esteio da moralidade.
O governador sorriu, bonachão.
— É aí que mora o perigo, senhor Dimas.
Prepare o decreto de exoneração — ordenou. E diante da perplexidade do subordinado, arrematou:
– Meu governo não permitirá nenhum deslize.

Elieser Cesar



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