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quinta-feira, 16 de março de 2023

UMA NOITE DE 50 ANOS - CARTA QUE NÃO RECEBI



O meu nome é Alexandre Vannucchi Leme. Quando entrei na USP, em 1970, ganhei o apelido de Minhoca.
Sempre fui vidrado em geologia. E colecionava rochas desde menino, em Sorocaba. Aonde eu fosse, voltava sempre para casa com algum mineral. Limpava as amostras, classificava, anotava a procedência, separava as ígneas das metamórficas e das sedimentares... Algumas eu dava de presente. Minhas irmãs ainda devem ter algumas dessas pedras.

Eu tinha 19 anos quando entrei na USP e me mudei para São Paulo. Egle, minha mãe, gostava de repetir, orgulhosa, que eu tinha sido o primeiro colocado no vestibular.

A verdade é que eu sempre gostei de estudar. Dava aulas particulares de português e matemática e passava o resto do tempo entre cadernos e livros. Só parava pra ver jogo do Timão. À noite, fechava a porta do quarto e ficava lendo até tarde, a única luz acesa da casa. Às vezes, mergulhava num tema por semanas.

Uma vez, o Adriano, que cuidava da área cultural do centro acadêmico, me pediu uma pesquisa sobre o impacto ambiental da Transamazônica, uma obra faraônica que tinha virado a menina dos olhos dos militares.

Em pouco tempo, comecei a participar do movimento estudantil. Naquela época, era tudo mais complicado. Censura, governo Médici, muita gente presa. Desde 64, os centros acadêmicos eram proibidos por lei de promover ações, manifestações ou propaganda política de qualquer espécie. Mas a gente se virava. Editava jornais, convidava artistas, organizava encontros e ia fazendo oposição à ditadura do jeito que dava. No terceiro ano, me aproximei da Ação Libertadora Nacional. Distribuía panfletos, escrevia notas, às vezes ajudava a esconder alguém ou alguma coisa, e buscava, à medida do possível, aumentar a adesão dos universitários à luta por democracia.

Em fevereiro, só não fui ao estágio de campo com a turma da Geologia em Diamantina porque tive de fazer uma cirurgia de emergência para retirar o apêndice no finalzinho de janeiro. Passei um mês praticamente de molho.

Fui sequestrado e conduzido ao DOI-Codi no dia 15 de março, uma quinta-feira, perto da hora do almoço. O major Carlos Alberto Brilhante Ustra estava eufórico. Minha prisão era tudo o que ele queria pra desmantelar a presença da ALN na USP. Ele acreditava que bastaria me apertar para que eu entregasse os companheiros.

Os primeiros a me torturar foram os agentes da equipe C: Attila Carmelo, que os colegas chamavam de Dr. Jorge, o Oberdan, o Mario, o Marechal e o Lourival Gaeta, que usava o codinome Mangabeira. Eles atribuíam a mim ações que eu não cometi, até porque estava de repouso em Sorocaba naquelas datas. Pediam nomes e eu dizia o meu, pediam nomes e eu repetia o meu, horas a fio.

A tortura se estendeu até à noite, quando fui jogado na X-zero, a solitária. No dia seguinte, quem assumiu a tortura foi a equipe A: Alemão, Rubens e Silva, Dr. Tomé, Dr. Jacó. "Meu nome é Alexandre Vannucchi Leme. Meu nome é Alexandre Vannucchi Leme". Foi a mesma coisa no sábado de manhã. Voltei para a solitária ao meio-dia, desta vez carregado. Por volta das quatro da tarde do dia 17 de março de 1973, foram me buscar para mais uma sessão de tortura e encontraram meu corpo inerte. Recém-operado, não resisti à porrada e aos choques elétricos. Uma hemorragia interna foi minha sentença de morte.

Em seguida, começaram a preparar outra versão. Fui jogado no porta-malas de um carro e levado para a esquina da Rua Bresser com a Avenida Celso Garcia, no Brás, onde o motorista de um caminhão foi pago para passar por cima de mim e declarar que havia me atropelado, ou melhor, que eu havia pulado na frente do caminhão ao tentar escapar da polícia. "Subversivo tenta fugir, mas morre atropelado".

Fui enterrado às pressas, como indigente, no Cemitério Dom Bosco, em Perus, antes da publicação das matérias.

Avisado da minha prisão por um telefonema anônimo, meu pai, José, professor do Senai em Sorocaba, viajou para São Paulo e me procurou no Dops, no DOI-Codi e no IML. Em todos esses lugares, negaram que eu tivesse sido preso. Meus pais souberam pelos jornais que eu estava morto.

Minha mãe e meu pai jamais desistiram de esclarecer as circunstâncias da minha morte e de fazer justiça. Mário Simas e José Carlos Dias foram os primeiros advogados a cobrar explicações sobre minha morte e meu paradeiro. Apenas em 1983, dez anos após meu assassinato, minha família recebeu meus restos mortais e pôde sepultá-los em Sorocaba.

Blog: Nesta sexta-feira, 17 de março de 2023, o cinquentenário do assassinato de Alexandre Vannucchi Leme será rememorado com um ato na Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, das 16h às 18h30.

Camilo Vannuchi - Uol

Viver é Perigoso

2 comentários:

Anônimo disse...

Pois é, e o covarde coronel Brilhante Ustra virou ídolo idolatrado por muita gente inclusive o sr. covarde ex-presidente fugitivo.

Anônimo disse...

Assassino e covarde. Virou herói do bolsonarismo...
Isto não é gente, é lixo.