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sábado, 16 de julho de 2022

A CARTA

São Paulo, 16 de julho de 2022

Ex - Amiga,

Entre amigos, as diferenças são bem vindas, os modos de pensar não precisam ser idênticos. 
Você torce Fortaleza; eu, Ceará. Você se diz conservadora; eu sou progressista. Você é de direita; eu, de esquerda. Até aí tudo bem. As assimetrias nunca impediram nossos abraços a cada reencontro.
Mas, convenhamos, há de se ter o mínimo de humanidade, uma dose que seja de compaixão para com a dor e a tragédia alheias. Você se diz cristã, cidadã de bem. Deus me livre desse seu cristianismo e da sua benquerença.
Você também se diz patriota, nacionalista. Seu avatar nas redes insociáveis é uma bandeira verde e amarela. Ainda assim, ignora o desmonte de um país inteiro, a degradação ambiental, a morte de indígenas, o garimpo ilegal, o estrangulamento das universidades públicas, a perseguição aos artistas, o sucateamento da saúde. Finge não ver o desmanche do Iphan, o esvaziamento da Funai e a ruína programada dos demais órgãos de preservação e controle.
Você filiou-se a uma seita desumana. Não quis tomar vacina, fez propaganda gratuita da cloroquina e até achou graça quando aquele sujeito abjeto, em tom de gracejo infame, simulou a falta de ar de um doente de Covid.
Você faz vistas grossas para o escândalo colossal do orçamento secreto, das emendas do relator, dos documentos colocados sob cem anos de sigilo. Você releva rachadinhas e rachadões. Espalha fake news, semeia desinformação.
Você, minha cara ex-amiga, se tornou uma pessoa má, rancorosa, ressentida. Agora deu para relativizar a ditadura e até defender a tortura. Diz que é a favor da vida e prega a proliferação das armas. 
Não te reconheço mais. Ou talvez não te conhecesse direito antes. De todo modo, vamos ter que dar um tempo em nossa amizade. Não sei se a sociopatia tem cura. Sinceramente, não lhe desejo o mal. 
Passe bem. Bem longe de mim.

Lira Neto

(João de Lira Cavalcante Neto Lira Neto, é escritor e jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará. Tem doze livros publicados.)

Viver é Perigoso

6 comentários:

Anônimo disse...

Acho que devemos tomar cuidado Zé. Olha a profecia do mito para os Nem Nem dita ontem para fiéis no Maranhão: "No dia do ponto final, nós temos um currículo para ser apresentado. Esse currículo são nossas ações ao longo de toda a vida, bem como as nossas omissões. Quem se abstém, quem diz 'eu não quero nem esse nem aquele' está errando também. Esse currículo é o que vai nos dizer se teremos ou não a sonhada vida eterna." Ai, ai ai! Estou lascado!

Edson Riera disse...

No primeiro turno da eleição passada, fui de Amoedo. No segundo, mesmo conhecendo a peça votei no Jair. Sempre soube que o Haddad era muito mais capaz do ele. As seguidas idas dele para consultar o Lula na prisão

Edson Riera disse...

eliminaram qualquer possibilidade de voto. Pelo Moro e pelo Guedes, optei por o que esta aí. Penso em cumprir minha obrigação cívica e votar no D'AVila. No segundo estarei viajando e não votarei. Sinceramente? Ainda não conclui sobre wual seria o pior.
Zelador

Anônimo disse...

Imperdível a opinião do Ruy Castro na FSP hoje no artigo: "E aquela do Nelson?" O que Nelson Rodrigues dizia do Brasil nos anos 70 faz ainda mais sentido hoje.
Ruy termina com uma citação antológica do escritor dramaturgo, entre inúmeras: "Quando os amigos deixam de jantar com os amigos por causa da ideologia, é porque o país está maduro para a carnificina."

Edson Riera disse...

Terrível. Tenho às mãos o livro "Anjo Pornográfico", lido em outubro de 2003 (está anotado). Ruy Castro escreve sobre a vida do
Nelson, um homem considerado da direita e com o filho Nelsinho, da esquerda e do movimento armado, preso, torturado e anos na prisão. Lembrando, Nelson Rodrigues, por tudo o que fez, parecia ter 90 anos, mas tomou o barco aos 68 anos.
Zelador

Anônimo disse...

Triste constatar a veracidade do texto. Vejo um futuro estranho e perigoso para nós todos. Como podemos mudar este quadro? Se pessoas próximas de quem não esperávamos atitudes assim se transformaram? Enfim. Vida que segue. (Dalva M Feitosa Santana)