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segunda-feira, 30 de março de 2020

AINDA NÃO CHEGAMOS NESSE ESTÁGIO


Pela primeira vez desde que temos memória, as vozes que prevalecem na vida pública espanhola são as de pessoas que sabem.

Pela primeira vez assistimos à aberta celebração do conhecimento e da experiência, e ao protagonismo merecido e até então inédito de profissionais de diversas áreas cuja mistura de máxima qualificação e coragem civil sustenta sempre o mecanismo complicado de toda a vida social. 

Nos programas de televisão em que, até recentemente, reinavam exclusivamente dissertadores especializados em opinar sobre qualquer coisa a qualquer momento, agora aparecem médicos de família, epidemiologistas, funcionários públicos que enfrentam diariamente uma doença que perturbou tudo e que a qualquer momento pode atacá-los.

Todas as noites, às oito, nas ruas vazias, eclodem aplausos como uma tempestade repentina, dirigidos não a demagogos embusteiros, mas a trabalhadores da saúde, que até ontem cumpriam sua tarefa acossados por cortes contínuos, pela falta de meios, pelo desdém às vezes agressivo de usuários caprichosos ou resmungões. 

Agora, exceto nos redutos habituais, não ouvimos slogans, nem lemas de campanha criados por publicitários, nem banalidades cunhadas por essa espécie de gurus ou de aprendizes de feiticeiro que inventam estratégias de “comunicação” e que aqui também, que remédio, já são chamados de spin doctors: charlatães, trapaceiros, vendedores de fumaça.

A realidade nos obrigou a nos colocarmos no terreno até agora muito negligenciados dos fatos: os fatos que podem e devem ser verificados e confirmados, para não serem confundidos com delírios ou mentiras; os fenômenos que podem ser medidos quantitativamente, com o mais alto grau de precisão possível. 

Tínhamos nos acostumado a viver na névoa da opinião, da diatribe sobre as palavras, do descrédito do concreto e do comprovável, inclusive do aberto desdém pelo conhecimento. 

Foi necessária uma calamidade como a que estamos sofrendo agora para que descobríssemos bruscamente o valor, a urgência, a importância suprema do conhecimento sólido e preciso, para nos esforçarmos em separar os fatos dos boatos e da fantasmagoria e distinguir com nitidez imediata as vozes das pessoas que sabem de verdade, aquelas que merecem nossa admiração e nossa gratidão por seu heroísmo de servidores públicos.

Agora ficamos com um pouco de vergonha de termos nos acostumado ou resignado durante tanto tempo ao descrédito do saber, à celebração da impostura e da ignorância.

Antonio Muñoz Molina é escritor.

Viver é Perigoso

2 comentários:

Anônimo disse...

Com justa razão depois do Twitter, Facebook e Instagram também apagam post de Bolsonaro.
Sobre o post acima destaco "Tínhamos nos acostumado a viver na névoa da opinião, da diatribe sobre as palavras, do descrédito do concreto e do comprovável, inclusive do aberto desdém pelo conhecimento. Agora ficamos com um pouco de vergonha de termos nos acostumado ou resignado durante tanto tempo ao descrédito do saber, à celebração da impostura e da ignorância". Cai como uma luva em certos comportamentos de homens públicos daqui.

Anônimo disse...

Camarada!
Bastiãozinho não tem descendência espanhola?
Chegaremos lá!!!