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quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

UTOPIA


Disse Nelson Rodrigues, que deve-se ler pouco e reler muito. Faz sentido, principalmente no tocante aos livros marcantes, uma vez que, com o passar dos anos, conseguimos observar os detalhes.

Aconteceu nos últimos dias com a minha estreia no Kindle. Falo da "Utopia" de Thomas Morus, lido da primeira vez,  em passado distante.

Thomas Morus viveu na Inglaterra, de 1478 a 1535. Condenado por sua verdade, foi decapitado. O filme "O homem que não vendeu a sua alma", conta a sua história.

Sua obra mais famosa é Utopia, do grego utopos = lugar inexistente. Proposta de uma sociedade alternativa perfeita.

No livro, é marcante e atual uma conversa entre o sábio, viajado e protagonista, Rafael Hitiodeu, Morus e seu amigo Pedro Gil.

Leia e constate uma lição de utopia.   

Pedro Gil, dirigindo-se a Rafael Hitiodeu, não contendo sua admiração pela suas reflexões:

- Na verdade, espanto-me que não vos tivésseis posto a serviço de algum rei. Certamente não haveria um só que não encontrasse em vós utilidade e satisfação. Encheríeis de encanto os seus lazeres com o vosso conhecimento universal das coisas e dos homens, e os incontáveis exemplos, que poderíeis citar, proporcionar-lhe-iam um sólido ensinamento e conselhos preciosos. Faríeis, ao mesmo tempo, uma brilhante fortuna para vós e os vossos.

Respondeu Rafael Hitiodeu:

- Eu pouco me inquieto com a sorte dos meus. Creio ter cumprido sofrivelmente os meus deveres para com eles.

Seguiu Pedro Gil:

- Entenda-nos, disse Pedro, a minha intenção não foi a de que servísseis um príncipe como lacaio e sim como ministro.

 Retrucou Rafael:

- Os príncipes, meu amigo, põem nisto pouca diferença; e, entre estas duas palavras latinas servire e inservire, vêm apenas uma sílaba a mais, ou a menos.

Seguiu Pedro Gil:

- Chamai a coisa como quiserdes, é o melhor meio de ser útil ao público, aos indivíduos, e de tornar mais feliz a própria situação.

De novo seguiu Rafael:

- Mais feliz, dizeis ! mas, como aquilo que repugna o meu sentimento, ao meu caráter, poderia fazer minha felicidade ? Presentemente sou livre, vivo como quero, e duvido que muitos dos que vestem a púrpura possam dizer o mesmo. Muita gente ambiciona os favores do trono; os reis não sentirão falta, se eu e dois ou três da minha têmpera não nos encontrarmos entre os cortesãos.

Então falou Morus:

- É evidente, Rafael, que não procurais riquezas nem poder, e não tenho menos admiração e estima por um homem como vós, do que por aquele que está à frente de um império. Parece-me, entretanto que seria digno de um espírito tão generoso, tão filósofo, como o vosso, aplicar todos os seus talentos na direção dos negócios públicos, embora houvesse que comprometer o seu bem estar pessoal; ora, a maneira de o fazer com mais proveito, é ainda a de entrar para o conselho de algum grande príncipe; estou certo de que a vossa boca não se abrirá jamais, senão para a virtude e para a verdade. Vós sabeis, o príncipe é a fonte de onde o bem e o mal jorram, como uma torrente, sobre o povo; e possuís tanta ciência e tantos talentos que, embora não tivésseis o hábito dos negócios, daríeis, mesmo assim, um excelente ministro para o rei mais ignorante.

Replicou Rafael:

- Incidis num duplo erro; e não só quanto ao fato em si como quanto à pessoa; estou longe de ter a capacidade que me atribuis; e mesmo que a tivesse cem vezes maior, o sacrifício de meu sossego seria inútil á causa pública.
Em primeiro lugar, os príncipes cuidam somente da guerra. Eles desprezam as artes benfazejas da paz. Em compensação, ocupam-se muito pouco de bem administrar os Estados submetidos a sua dominação.
Quanto aos conselhos dos reis, eis aproximadamente a sua composição:
Uns se calam por inépcia, e teriam mesmo grande necessidade de ser aconselhados. Outros são capazes, e sabem que o são, mas partilham sempre do parecer do preopinante, que está em melhores graças, e aplaudem, com entusiasmo, as pobres imbecilidades que este entende desembuchar; esses vis parasitas só uma finalidade: ganhar , por uma baixa e criminosa lisonja, a proteção do primeiro favorito. Os outros, são escravos de seu amor próprio e escutam apenas a própria opinião, o que não é de admirar, pois a natureza insufla cada um a afagar com amor os produtos de sua invenção. É assim que o corvo sorri à sua ninhada, e o macaco aos seus filhotes.

Que sucede então no seio desses conselhos onde reinam a inveja, a vaidade e o interessa ? Intenta alguém, apoiar uma opinião razoável na história dos tempos passados, ou nos costumes dos outros países ?

Os outros se mostram surpresos e transtornados; e com o amor próprio alarmado como se fossem perder a reputação de sábios e passar por imbecis. Eles quebram a cabeça até encontrar um argumento contraditório, e, se entrincheiram-se neste lugar comum : Nossos pais assim pensaram e assim fizeram; ah! queira Deus que igualemos a sabedoria de nossos país ! Depois se assentam pavoneando-se, como acabassem de pronunciar um oráculo. Dir-se-ia, ao ouvi-los, que a sociedade vai perecer se surgir um homem mais sábio que os seus antepassados. Enquanto isso, permaneçamos indiferentes, deixando subsistir as boas instituições que eles nos legaram; e quando surge um melhoramento novo agarramo-nos à antiguidade para não acompanhar o progresso.  

É a vida...

Viver é Perigoso

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