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terça-feira, 28 de abril de 2015

PARA MIM, BLUES.



O QUE LEMBRAREMOS ANTES DE ESQUECER

"...Sobre o Alzheimer, já não mais imune à narrativa dos heróis de guerra, recomendo com muita, mas muita veemência mesmo, um premiado documentário chamado Alive Inside: a Story of music and Memories, que pode ser traduzido como “Vivo Por Dentro: uma História de Música e Memória”. Para quem tem Netflix, ele está lá, com legendas. Mas também pode ser comprado no próprio site. Éa trajetória real do americano Dan Cohen, um assistente social que trabalhou com computadores a maior parte da vida, por instituições que abrigam pessoas com Alzheimer e demências variadas, instituições onde os corpos estão submetidos à cultura da medicalização. Dan pediu ao diretor do filme, Michael Rossato-Bennett, que gravasse sua experiência por um dia, mas Michael se encantou de tal maneira pelo que testemunhou que ficou três anos gravando. Dan, um homem um pouco encurvado, meio careca, um par de óculos comuns, roupas quase antiquadas, começando ele mesmo a envelhecer, tem uma obsessão: colocar fones de ouvido entre as orelhas de gente esquecida de si mesma. Em seguida, liga a música que a pessoa mais gostava ou, quando não consegue descobrir qual é pelas conversas com familiares, tenta músicas da época de sua juventude.
Dan, alguém por quem passaríamos na rua sem notar, é, ele mesmo, emocionante. Mas o que acontece quando ele bota fones de ouvido entre as orelhas de gente que parecia morto-vivo, zumbizando numa dessas casas de velhos, é totalmente acachapante. Descobrimos então que aquelas pessoas estão “vivas por dentro”. Henry é um deles. Cabeça tombada, olhos vazios, não reconhece nem a própria filha. Henry só respira. E então Henry escuta a música da sua vida. E o que testemunhamos é alguém ressuscitando, um daqueles milagres de gente.
Henry levanta a cabeça, arregala os olhos. Henry canta, Henry dança com os pés, Henry dança com as mãos. Henry lembra. O que ele lembra? A época mais feliz. Que, como de hábito, não é nenhum momento apoteótico, nada que vire notícia, apenas o tempo em que ele, ainda menino, fazia entregas de bicicleta para uma mercearia. Henry estava vivo, a gente é que não sabia. E, quando ele revive, ao seu redor todos também revivem, uma velha senhora orvalha os olhos e sabemos o que ela está sentindo porque também sentimos. O retorno de Henry ao mundo dos vivos, num vídeo de poucos minutos, foi colocada na internet antes da finalização do documentário e se transformou num fenômeno viral, com milhões de acessos. Não faço o link aqui porque acho que Henry é ainda mais bonito no contexto do documentário.
O neurologista e escritor Oliver Sacks é sempre fascinante, como quando explica porque a música se faz ponte entre o mundo de dentro e o de fora: “A música é inseparável da emoção. Portanto, não é apenas um estímulo fisiológico. Se funcionar irá chamar a pessoa inteira, as diversas partes do cérebro, a memória e as emoções. (...) O filósofo Kant disse que a música era arte vivificante. E Henry foi vivificado. Voltou à vida”.

Eliane Brum - El País

Um comentário:

marcos.caravalho disse...

Pode ir aí abaixo um comentário maluco, pura traição da memória. Ainda bem menino, ouvia, pela Radio Nacional/RJ, uma espécie de radionovela que narrava as histórias da Bíblia.
Vendo/ouvindo esse vídeo fabuloso me veio à lembrança, de maneira meio esfumaçada, um episódio dessa radionovela, que, considerada a quantidade de neurônios já chamuscados que persistem em morar no meu cérebro, pode muito bem ser uma alucinação senil: o rei Saul era meio chegado a explosões de cólera (dores de cabeça?? Não me lembro ao certo...). Causava um estrago razoável na corte quando isso acontecia. Daí, chamaram o David, ainda meninote, com sua harpa para tocar alguma coisa para o rei. Tocou. A fera se acalmou.
Séculos depois, vemos nesse vídeo, o mesmo remédio aplicado em circunstância/contexto diferente.
Fica o registro.
Como curiosidade que seja.
Música pode salvar o mundo seu Zé.
Abraço

A propósito, digite "pt.jango.com".