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sábado, 20 de abril de 2013

É A VIDA...


Você está prestes a tomar o barco.
Sozinho, lúcido e sem sofrimentos providencia um gravador e resolve deixar registrado toda a sua vida. Registrar realmente como aconteceu e não versões fantasiosas e ajeitadas criadas por você mesmo.
Tem que ser rápido. Uma semana voa.
Não terá dificuldades. Os estudiosos dizem que nessas ocasiões a vida toda passa pelo pensamento como se fosse um filme.
Não insista. Não terá lembrança alguma do que aconteceu até os seus três anos. É como não tivessem existidos.
O filme inicia-se aos quatro anos.
Um bom começo seria pelos remédios ruins que lhe enfiaram guela abaixo. Injeções e vacinas. Roupas domingueiras desconfortáveis, fora do tamanho, sapatos rígidos e engolidores de meias de algodão. Banhos parciais de bacia nos finais de tarde. Cuidados especiais com o rosto, pescoço, axilas e pés. O resto ficava para sábado.
Desodorante ? só pomada minancora ou creme de rosas
Meninice.
Televisão nem pensar. Rádio só em ondas médias e curtas. Som horrível de locução de futebol, nas tristes tardes de domingo. Novelas radiofônicas durante à tarde, Jerônimo, o Heroi do Sertão, no final do dia, logo após a agonia provocada pela Ave Maria.
Famigerado instrumento instrumento de tortura criado pelos adultos: Boletim escolar e destaques com caneta com tinta vermelha.
Brincadeiras de rua, primeiras brigas, nadar escondido e pelado no Sapucai. Muito futebol e a primeira paixão, sempre por uma pessoa infinitamente de mais idade. Mágoas profundas e passageiras.
Primeiras grandes perdas pessoais. Por que choravam tanto ? Só entenderia mais tarde: medo da saudade. Ô trem doído !
Vazios, mudança e  reconstrução de planos. A mudança assusta. Se brusca, apavora.
Cinema ? "A vida de Cristo", Marcelino Pão e Vinho" e comédias do "Gordo & Magro".
Tirando o Nelson Gonçalves e o Roberto Carlos, música só americana. Todas músicas em línguas diferentes do português eram americanas. Frank Sinatra, Beatles, Ray Charles, Edith Piaf e o ídolo maior, Elvis Presley.
Uma glória poder entrar nos filmes censurados para menores de 14 anos.
Coração disparado, frio no estômago, cabeça girando e o primeiro namoro escondido. As palavras sumiam. Segurar nas mãos levavam ao paraíso.
Tragédias gregas: Levar um fora ou desistir da namorada. Colocar o travesseiro (dizia-se trabeceiro) sobre a cabeça e molhar o lençol com lágrimas, enxugadas com planos de vingança.
"Nunca mais", quando se é jovem pode durar muito pouco. Minutos, horas e não mais que dias. 
Cabelos compridos, barbinha por fazer, calça Lee (uma só), duas camisas Lacoste (podia ser com jacarezinho falso) e o supra-sumo da felicidade:
Uma blusa azul acetinado da engenharia.
O embelezamento físico e intelectual acontecia por milagre. Antes mesmo dos cabelos voltarem ao comprimento normal, após o trote, elementos feios e fora de esquadro se transformavam em deuses gregos.
Divino ser  paparicado pela sogra.Acontecia.
Trouxas orgulhosos carregando pelas ruas da cidade, réguas T, balizas e teodolitos. Super-homens.
Obrigatório ler o livro "Lobo das Estepes" do Herman Hesse e  "O Meio é a Mensagem" do Marshall McLuhan.
Ditadura brava e tímidos movimentos de rebeldia. Chico Buarque e Caetano ajudavam a desabafar.
Fogos históricos. Definitivamente, Hi-Fi, Cuba Libre, vinho Astronauta e Rabo de Galo, não se combinam. 
Dane-se o mundo. Quero formar, comprar um fusca zero, um relógio Seiko e mais uma calça Lee. Não vou precisar mais da mágica blusa azul da engenharia.
Vou casar.
Engenheiro, respeitado e louco para usar alguma das teorias que aprendeu na Escola. Difícil.
Casamento, pernil, maionese e pé na estrada.
Vida de luta. Vida de perdas. Vida de conquistas. Vida feliz.
Filhos, netos e retorno do guerreiro para a aldeia.
No rádio do carro, Gonzaguinha canta com realismo:
"Começaria outra vez, se preciso fosse..."
Comum demais para dar um filme. E se desse ? seria um drama ou uma comédia?
O importante é que pelo menos para os seus, seria um épico, daqueles do Charlton Heston.
É a vida...
 
ER
 
 
 
  




















Um comentário:

W. Bianchi disse...

Grande Ze, V. ta ficando cada vez melhor! Texto perfeito e muito legal!
Abs paraibanos.