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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

CENA ARREPIANTE

 
"A admissão de novos detentos na Penitenciária de São Paulo, mais conhecida como Carandiru, acontecia todo fim de tarde.
Os homens desciam dos camburões no pátio interno, conhecido como Divinéia, para formar a fila que os levaria às celas coletivas do Pavilhão 2, onde teriam o cabelo cortado rente nas têmporas, receberiam a calça cáqui que os identificaria e passariam várias noites dormindo no chão, colados uns aos outros, com os tênis ou as havaianas servindo de travesseiro, em meio às sarnas e à tosse alheia, até conseguir vaga nos demais pavilhões.
Como em obediência a um comando superior, ao descer do camburão invariavelmente olhavam ao redor e para cima, na direção das muralhas guardadas pelas metralhadoras dos PMS. Abaixavam a cabeça e seguiam em frente até desaparecer atrás do portão de ferro, engolidos pelo monstro de concreto.
A chegada de presos em qualquer cadeia é um espetáculo desolador; não tem a menor graça ver aquelas vidas - jovens na maioria e pobres na totalidade - desperdiçadas atrás das grades.
Nada mais semelhante à imagem de bois a caminho do matadouro. Apesar da melancolia que a cena me faz sentir, até hoje não consigo deixar de acompanhar essas admissões atento aos detalhes e às expressões individuais como se fosse possível desvendar o mal que eles fizeram, os dramas familiares e a agonia que lhes vai na alma ao deixar a liberdade pars trás.
A "Ave Maria" de Gounod, cantada por uma soprano que nunca pude identificar, às seis da tarde na Boca de Ferro, o alto-falante fanhoso instalado no alto da fachada do pavilhão 2, horário que em geral coincidia com a admissão de novos detentos, ficou para mim definitivamente associada à fila de prisioneiros a caminho do portão que por anos seguidos os separaria do mundo livre. Se num fim de tarde eu decidir dar cabo da vida mas sentir que me falta coragem, bastará colocar no aparelho de som um CD com a "Ave Maria".

Trecho do livro "CARCEREIROS" - Drauzio Varela  (Companhia das Letras) - Ganhei de presente da querida Renata Duarte.

ER

2 comentários:

Anônimo disse...

Livro bão.
Esse Drauzio escreve muito.
Bom gosto da Renata.

Anônimo disse...

Edson,
Não sei quem é melhor você ou o Drauzio.
Tirando uns poréns do Drauzio, que gosta de aparecer, ele pode até chegar a ser um Edson Riêra, porém terá que aprender humildade com você.
Escreva livros, que antecipo, serão sucessos. Pode falar de política, ética, amenidade, espiritualidade e muitas coisas que brilhantemente escreve no blog.
Igual a você não há comparação.