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quarta-feira, 19 de maio de 2021

ALUNOS DA HISTÓRIA


"Quando eu digo que a única coisa que a História ensina é que a gente não aprende nada com a História sou chamado de pessimista. Mas é difícil não pensar assim quando olhamos os erros que cometemos no passado e comparamos com os que cometemos agora. Parece que a História não é uma boa professora.

Na primeira metade do século 20, os recursos para tratar isquemia cardíaca eram limitados. Até que em 1939 o cirurgião italiano Davide Fieschi teve uma ideia que parecia promissora: na parte anterior do tórax, próximo do coração, há duas artérias chamadas mamárias. Como não fazem muita falta (tanto que até hoje são retiradas para pontes e restaurar irrigação cardíaca), Fieschi imaginou que amarrá-las poderia desviar o sangue delas para o coração, corrigindo a isquemia e sanando a dor. Três anos depois, ele viria a publicar resultados impressionantes: 75% dos pacientes experimentavam alívio significativo na dor, e um terço dos operados ficava completamente curado. A cirurgia de Fieschi passou então a ser realizada rotineiramente por quase duas décadas, aparentemente um sucesso.

Até que na década de 1950 um grupo de médicos americanos convenceu o National Institute of Health a financiar um estudo que colocasse a técnica à prova, comparando sua eficácia com uma intervenção inócua, a cirurgia placebo. E os resultados foram também assustadores: os pacientes que tinham as artérias amarradas e os que tinham o tórax aberto, mas não recebiam tal intervenção, relatavam a mesma taxa de melhora. Não fazia diferença. Para piorar, embora subjetivamente todos se sentissem melhor, medidas objetivas como o desempenho em testes ergométricos não mudavam em nada. Eles não estavam sendo realmente tratados.

Hoje fica claro que era resultado do efeito placebo. Ele não só convencia os pacientes de que tinham melhorado, como reforçava a impressão dos médicos de que a técnica era eficaz, o que perpetuou durante praticamente 20 anos a realização de um procedimento arriscado, caro e inútil.

Quem insiste em tratamento precoce para covid19 até hoje não é necessariamente burro ou mal-intencionado, mas se justifica apontando experiências pessoais, opiniões de especialistas, escolhendo ler apenas estudos pequenos que referendem o uso das medicações, deliberadamente ignorando a quantidade muito maior de estudos enormes que as contraindicam. E, para complicar, depois de passar um ano defendendo publicamente tal postura, muitos acharão impossível aceder às evidências e dizer para si e para os outros “Errei. Não sabíamos. Mudemos”. Mais uma vez, contudo, independentemente da sua resistência, o conhecimento prevalecerá e os kits covid serão totalmente abandonados.

É, talvez a História não seja uma má professora. É que nem sempre encontra bons alunos."

Daniel Martins de Barros - Professor da FMUSP (Estadão)

Viver é Perigoso

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