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terça-feira, 24 de novembro de 2020

O NAVIO DA MORTE


De propriedade da Royal Mail, o serviço postal do Reino Unido, o navio Demerara (batizado com o nome do açúcar originário da Guiana) fazia a rota Liverpool-Buenos Aires e transportava, além de passageiros, mercadorias e correspondências. Na viagem de volta, levaria carne e café, entre outras mercadorias.

O Demerara zarpou de Liverpool, no dia 15 de agosto de 1918, rumo a Buenos Aires, tendo como comandante J.G.K. Cheret. Estava com 562 passageiros e 170 tripulantes a bordo. Já no dia seguinte, 16 de agosto, levou o primeiro susto: por volta das oito da manhã, o Demerara foi atacado por dois submarinos alemães, em plena Primeira Guerra Mundial. Escapou.

Depois de passar por Lisboa, o navio cruzou o Atlântico rumo ao Brasil. A travessia durou 25 dias.

Não se tem notícia de quando o vírus (da gripe espanhola) subiu a bordo: se na escala em Lisboa, ou se o navio já zarpara infectado da Inglaterra. A primeira onda da gripe não foi tão letal quanto a segunda. Derrubava, mas não matava. A segunda foi a que se espalhou pelo mundo, e foi ela que embarcou no Demerara.

Em 9 de setembro, o Demerara atracou no Recife. Era a primeira das quatro escalas no litoral brasileiro: Recife, Salvador, Rio e Santos. Descaso total com as questões sanitárias.

Do Recife, o Demerara seguiu para Salvador, onde chegou em 11 de setembro. Na capital da Bahia, o descaso se repetiu: passageiros e tripulantes desceram à terra firme sem serem inspecionados pelas autoridades sanitárias. 

Duas semanas depois, o jornal A Tarde, fundado em 1912, contabilizava cerca de "setecentos enfermos" espalhados por todos os lugares: de quartéis a hospitais, de escolas a igrejas.

Tanto no Recife quanto em Salvador, os governadores negaram a existência da gripe espanhola. O próximo destino era o Rio de Janeiro.

Na Baía de Guanabara, em frente à Ilha das Cobras, uma bandeira amarela - sinal de doença a bordo - já tremulava no alto de um dos mastros. O inspetor de saúde do porto, José Maria de Figueiredo Ramos, examinou alguns passageiros - dois deles em estado grave - e constatou que o navio estava infectado. Mesmo assim, o Demerara foi autorizado a atracar. Era 15 de setembro de 1918.

Só na capital da República, desembarcaram 367 passageiros. Uns se queixavam de leve resfriado. Outros reclamavam de dores no corpo. Outros, ainda, com sintomas mais graves, como sangramento pelo nariz, boca e ouvidos, entre outros orifícios, tiveram que ser hospitalizados. Terminado o desembarque, o Demerara prosseguiu viagem.

E lá se foi o Demerara, rumo a Montevidéu, onde aportou em 23 de setembro. Os jornais brasileiros tentaram alertar as autoridades do Uruguai. Mas o diretor de Assistência Pública daquele país, Horácio González del Solar, não lhe deu ouvidos. "Que exagero!", desdenhou. 

Quando chegou a Buenos Aires, o Demerara finalmente passou por uma inspeção rigorosa. As autoridades argentinas fizeram o que as brasileiras não tiveram coragem de fazer: segurar o navio e desinfetá-lo.

Àquela altura, a gripe espanhola já ganhara os mais inusitados apelidos. No Rio, deram-lhe mais um: "limpa velhos", por acreditarem que o novo vírus atacava apenas a população idosa. 

Um dos primeiros jornais a noticiar o que todos já desconfiavam foi O Combate, de São Paulo. Na edição de 27 de setembro de 1918, estampou na primeira página: "A 'espanhola' já chegou ao Brasil". Àquela altura, o Demerara já era conhecido pelo macabro apelido de "navio da morte". Estima-se que, só no Brasil, a gripe espanhola tenha matado 35 mil pessoas. No mundo inteiro, a moléstia teria dizimado, segundo as estimativas mais conservadoras, 30 milhões de pessoas.

Em 10 de outubro de 1918, o então diretor geral de saúde pública, Carlos Seidl (1867-1929), o ministro da Saúde da época, convocou uma coletiva de imprensa. Diante de médicos e jornalistas, minimizou a epidemia, questionou os números e chamou os jornais de "irresponsáveis" e "sensacionalistas".

Uma semana depois, o presidente da República Venceslau Brás o chamou no Palácio do Catete e o demitiu. Em seu lugar, assumiu o médico Theophilo de Almeida Torres, que convocou o sanitarista Carlos Chagas para encabeçar uma força-tarefa contra a gripe espanhola. 

(dados BBC)

Viver é Perigoso

3 comentários:

Marco Antonio Gonçalves disse...

Zelador, como você bem lembrou, o Demerara partiu de Santos direto a Montevidéu. Quem levou a doença para o Sul do Brasil foi um navio de nome muito familiar para nós. O Vapor Itajubá, que levava o nome em homenagem da terra natal do presidente, foi o responsável por levar a gripe espanhola para o Sul do Brasil.
Em Florianópolis, a gripe chegou em 6 de outubro de 1918. Veio a bordo do navio Itajubá, com 38 doentes contaminados pelo terrível vírus. No mesmo Itajubá ou em outros navios, a gripe desembarcou também em São Francisco, Itajaí e Laguna. Depois, o navio chegou ao Rio Grande do Sul, quando os 38 tripulantes desembarcaram. Em poucas semanas, mais de mil pessoas morreram na capital gaúcha.

Anônimo disse...

Demerara lembra algo tão doce, nosso Demerara de hoje seriam muitos de nós mesmos capitãoneados por.....

Edson Riera disse...

Marco Antonio

Não sabia do navio Itajubá. Caramba !

Grato e um abraço.

Zelador