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sábado, 17 de fevereiro de 2018

ENQUANTO AGONIZO


Paulo Gabriel Godinho Delgado, simplesmente Paulo Delgado, é mineiro de Lima Duarte. Um destacado professor, sociólogo e político brasileiro.
Foi deputado federal por seis vezes, tendo sido o mais votado do PT de Minas Gerais em duas eleições. 
É formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora e mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais.

É fundador do Partido Partido dos Trabalhadores ao lado de Florestan Fernandes, Mario Pedrosa, Antonio Cândido, Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Freire e outros.

Foi da primeira direção nacional do PT junto com Apolônio de Carvalho, Luiz Inácio Lula da Silva, Vladimir Palmeira, Plínio de Arruda Sampaio, Francisco Weffort, Lélia Abramo e Olívio Dutra.

Escreve a coluna de política internacional dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas. Também é colunista regular dos jornais O Globo e o Estado de São Paulo.

Delgado escreveu e foi publicado nos jornais, sob o título "Enquanto Agonizo". Duríssimo depoimento. Tentei condensar numa linguagem internet e não consegui. Um quadro real  pintado por alguém que viveu próximo. Leia, nem que demore um pouco.

"Ele se amontoa sobre o país. Hiperrealiza seus desejos, usa aliados como escória. Sem álibi, mandou o genro do compadre desqualificar a acusação, e deu errado. Segue trabalhando mal o luto. Um voo tão alto, uma queda tão grande. Revelou-se político de comodidade, tirou vantagem da desonestidade e alega princípios para abafar inconveniências. Chegou ao limite de querer aproveitar da própria decadência.

Um grupo e ele saem do Fórum seguindo na direção do passeio. Embora vários do cortejo sejam mais altos e estejam à frente dele, qualquer pessoa que os observe do outro lado da rua pode ver a cabeça dele ultrapassando por uma cabeça a dos seus apoiadores. Não é perspectiva, é subalternidade. Lembra livro de Willian Faulkner, Enquanto Agonizo, onde um pai brutal impõe a todos um enterro sem fim, não deixando a vida de ninguém fluir sem ter de pensar no seu egoísmo doentio.

A calçada, esturricada pelos pisões do povo e pedras soltas, segue reta como um fio de prumo até o pé do avião emprestado onde ele os deixará, indiferente aos terrenos resvalantes que o levaram a escorregar. Antes de embarcar, mirando o dilúvio, determina: meu reino por minha vitimização, façam ferver o coração, vai ser longa a condolência. Preparem o caixão e, se der certo, enterrem, com a toga preta do Supremo, o princípio da igualdade de todos perante a lei.

Alguns aliados não aduladores sentiram que havia alguma coisa ruim. Nem em silêncio era razoável aquela insensatez de celebrar como triunfo uma calamidade. Nem apropriado apiedar-se de um político mais que do povo. Uns diziam que era anomalia necrológio de homem vivo; outros, que não se chama crime de perseguição; todos julgavam sinistro candidato cuja glória é ser condenado por mentir.

Ele estava se esvaziando rapidamente. Um tique nervoso, fruto de soberba banal, o levava a referir-se a si mesmo na terceira pessoa. “Não há qualquer rival de ‘o líder’ em todo o firmamento.” Era assim mesmo que se chamava, “o líder”, apelido privado que incorporou ao nome, marca da sua ambiguidade pública.

Como numa piada, arrumou advogado na ONU. Sentia-se um país. Não queria mais suar. Botaram na cabeça dele que se é vontade de Deus que as pessoas tenham opinião diferente sobre honestidade não cabe a ele discutir desígnios divinos. Suas proezas entardeceram e começaram a alimentar uma ordem política incapaz de produzir valores sociais. Vazio, deixou-se preencher pelo maior valor do mundo moderno, o ouro de tolo, que lambuza no presente a consequência do futuro.

Quando mais se encheu de medalhas, mas se esvaziou de ideias. “A abundância de diploma acaba com o diploma”, alguém alertou, e foi expulso da sala. E uma pessoa vazia na política não é mais um político. Enchendo-se de autoelogios e fúria, logo ele não sabe se é ou não é, ou que é que de fato é. Saiu do trilho, aumentou necessidades, até que as dádivas deram por conhecidos seus favores.

Enfraqueceu a autoridade por seu abuso e o hábito de confundir poder com relação e intimidade. No mundo das decisões apressadas, dissimulações, das interdições sobre as quais ninguém tem domínio, da liberdade irresponsável de ser o que você quiser ser, a transgressão percebeu a melhor das convergências. Com a autoridade participando, o erro ganha mais velocidade.

Seu talento para a evasão o tornou conhecido como aquele político “veloz estruturador de negócios e soluções”. Logo que recebeu a resposta da carta enviada aos brasileiros donos de banco, escrita em inglês, percebeu que pecado-salvação é mera questão de palavra. Harmonizou-se com a parceria de talentosos ocultadores de intenções para montar as ladainhas, a lenga-lenga a que deu o nome de política de governo.

Quando a Justiça abriu a porta dos seus transtornos desesperadores, ele já havia caído na mais sedutora armadilha da política atual, o dinheiro fácil, e não quis reconhecer o que fez. Saiu em desespero para pagar a promessa de 40 anos atrás. Mas sem dizer o que deveria ter dito ao juiz – o que o deteria na certeza de que alcançar seu objetivo primordial de ser respeitado, ser alguma coisa nova, é que compunha seu élan vital – pressupôs que a condição de vítima evitaria o caminho da desmoralização. Ele voltou a suar, como se estivesse espumando, feito um cavalo desembestado, convocou adoradores, dependentes, para a velha modalidade de ação heroica – camisa de partido, candidatura, comício, farisaísmo – na tentativa desesperada de incinerar a sentença e botar fogo na pavorosa jornada da Justiça de ousar apontar o dedo para quem sempre fez o que quis e nunca foi tão adequadamente contrariado.

Quando ouviu “estamos aqui e você tem de lidar conosco”, percebeu que escondera dos amigos o que os inimigos já sabiam. Falhou em grandeza, foi-se a profecia. Quem dera fosse capaz de suportar o sucesso com mais honestidade e a adversidade com mais autocontrole.

Um partido de esquerda moderno e com capacidade de diálogo deve parar de tratar de forma errada o erro. E reconhecer que um período de governo com um presidente deposto, três ex-presidentes da Câmara, senadores e inúmeros ministros de Estado presos ou processados, dirigentes partidários e governadores confinados ou envolvidos, a maior empresa do País dilapidada, a autoridade olímpica nacional presa, o bilionário do período encarcerado, a Copa investigada, fundos de pensão arruinados, o BNDES um clube de amigos, grandes empresários condenados, frugal intimidade com ditadores, etc., não foi um período virtuoso.

O que “o líder” quer é o refluxo da identidade perdida, fugir da responsabilidade confinado na condição de perseguido. Pelo alto, espalha simulacros de habeas corpus, certo de que a Justiça dos privilegiados prevalece e o ressuscita, como Lázaro. Por baixo, mantém agitada a agonia, seguro de que a manipulação do povo reabsorve a desordem que ele criou e a dissolve na sociedade até sumir sua autoria."

Paulo Delgado

Viver é Perigoso



10 comentários:

marcos antonio de carvalho disse...

Belo texto. Acerta na mosca com a elegância de quem estoca com um florete.
Parabéns pela transcrição total e literal do perfil.
Sua divulgação pelo blog vai atingir muita gente que, de outra maneira, perderia essa jóia.

Anônimo disse...

A melhor citação do excelente texto:"Um partido de esquerda moderno e com capacidade de diálogo deve parar de tratar de forma errada o erro." Admitir e assumir a culpa é muito difícil. Tendem a só buscar incessantemente o poder. Só para estadistas, homens (e mulheres) verdadeiramente de bem. Ou o partido faz isso com enorme atraso ou perecerá. Mirar na África do Sul recentemente seria bom exemplo. observador da cena.

Túlio Vargas disse...

Muito lúcido. Deve ter-lhe doído escrever.

Edson Riera disse...


Amigos -

Quem está pagando por isso é o País. Vai custar muito para corrigir tantos erros, tanto personalismo.

Abraços

Zelador

Anônimo disse...

Concordo. Após assumir o poder o PT deixou de ser um partido para virar uma ferramenta na mão de poucos ou de um:Lula. Como os demais partidos. Pena.

Edson Riera disse...

Pena -

Um petista consciente e bem informado teria a obrigação de assinar o depoimento do Sr. Delgado. Para isso, não poderia ser um profissional do partido, um cego apaixonado que pensasse no Brasil em segundo plano e tivesse por meta, a reconstrução do partido, voltando aos princípios que nortearam a sua criação e claro, sem personalismo.
Simples e impossível.

Zelador

Anônimo disse...

Impossível.
Ulisses

Edson Riera disse...

Ulisses,

Os comunistas, espécie em extinção, ainda têm ideologia. O petistas não. Acreditam num colcha de retalhos que chamam de esquerda. Um mistura de Coréia do Norte, China, Cuba e Venezuela, um pouco de socialismo, tudo acompanhado das benesses do capitalismo.
Como foram muito veementes na era Lula, hoje ficaria difícil encarar os conhecidos com uma conversa amena. Dizer o quê ? Esqueçam o que falei ?
Então se aperfeiçoaram em comparações, tipo: Eles também fizeram, o Aécio não foi processado, o Moro está a serviço dos americanos, etc, etc.
Aliás, não deve ser fácil estar enterrado até a cintura no pântano e pensar em voltar. A primeira reação deve ser seguir adiante na esperança de encontrar águas mais rasas.

Zelador

Anônimo disse...

Ou morrer pela Patria amada..

Edson Riera disse...
Este comentário foi removido pelo autor.