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segunda-feira, 5 de agosto de 2013

HILDA HIST & JOHN LENNON



Hoje na Ilustríssima - Folha - Do Alcir Pécora

"..Dos tantos relatos incríveis que ouvi de Hilda, repasso um, na qual tive um pequeno papel e, temo dizer, também um papel pequeno. Certo dia, ela me contou que, num disco de John Lennon que ela ouvira, numa rádio local, uma voz dizia em português de Portugal: "E se eu dissesse que Deus era o Amor".
"Que disco é esse, Hilda? Você se lembra ao menos do título da música?", lhe perguntei. Tudo que ela recordava era que chegara a ligar para o DJ da rádio de Campinas pedindo-lhe para tocá-la novamente e que ele mencionara tratar-se de um disco de Lennon em parceria com outro cantor. Não tinha ideia do nome, mas acudiu-lhe um pormenor: o DJ dissera que a faixa estava no lado B do LP.
Não me ocorria nenhum álbum inteiro que Lennon partilhasse com outro cantor, a não ser um, que eu tinha em minha coleção: "Pussy Cats", de Harry Nilsson. Tão logo deixei Hilda, fui direto para casa e me pus a ouvir o lado B do disco, com os ouvidos colados no aparelho de som.
Não precisei esperar muito para levar um susto: já ao fim da primeira faixa do lado B, ouvi a tal voz sussurrar qualquer coisa próxima de "Se eu dissesse...", com sotaque português. Não entendia bem o resto, mas aquele início de frase soava mesmo espantosamente lusitano.
Tratava-se do cover de "Save the Last Dance for Me", um velho R&B de autoria de Doc Pomus e Mort Shuman, que alcançara o topo das paradas, em 1960, com The Drifters. Manejando o equalizador, fui tentando separar o som instrumental e os backing vocals dessa voz ao fundo, que finalmente se revelou bem clara.
Desgraçadamente, não havia português algum, mas sim as palavras que davam título à canção, escandidas de um modo particular. "Save the Last Dance for Me" soava próximo de "Sei/di/lés/déns/fer/m´ou", graças a um "o", que finalizava a vocalização. Ou seja, a sequência guardava coincidências fonéticas com "S´eu/di/sés/deus/ér´/mor".
O que faltava para ser exatamente "E se eu dissesse que Deus era o Amor" era um nada para a fina sintonia de Hilda, acostumada a distinguir frases inteiras nos chiados entre as estações do rádio.
No dia seguinte, tomado menos pela emoção do espírito científico do que pela do espírito de porco, contei-lhe a minha descoberta que, a bem dizer, anulava a dela.
Ela ouviu tudo pacientemente, duvidou aqui e acolá, me explicou tudo de novo, como se eu não tivesse ouvido bem, e, enfim, menos desconsolada do que consolando a mim, gentilmente mudou de assunto.
Meses depois, ela me contou a mesma história sobre John Lennon e a frase lusa, sem qualquer menção ao meu reparo anterior. Me senti perdoado.
 
Alcir Pécora, é professor de teoria literária da Unicamp, autor do livro "Máquina de Gêneros" (Edusp) e organizador de "Por Que Ler Hilda Hilst" (Globo).
 
ER

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