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quinta-feira, 16 de agosto de 2012

PAÍS AVANÇANDO PARA TRÁS

Demétrio Magnoli - Sociólogo e Doutor em Geografia Humana - USP ( resumo do escrito no Estadão)

Nos EUA as políticas de preferências raciais jamais se cristalizaram em reservas de cotas numéricas. Índia e África do Sul reservaram parcelas pequenas das vagas universitárias a grupos populacionais específicos. O Brasil prepara-se para excluir 50% das vagas das instituições federais da concorrência geral, destinando-as a estudantes provenientes de escolas públicas.
Metade das vagas reservadas contemplará jovens oriundos de famílias com renda não superior a 1,5 salário mínimo. Todas elas, em cada "curso e turno", serão repartidas em subcotas raciais destinadas a "negros, pardos e indígenas" nas proporções de tais grupos na população do Estado em que se situa a instituição. Uma extravagância final abole os exames gerais, determinando que os cotistas sejam selecionados pelas notas obtidas em suas escolas de origem.
Os vestibulares e o Enem revelam as intoleráveis disparidades de qualidade entre escolas privadas e públicas. Entretanto, revelam também que em todos os Estados existem escolas públicas com desempenho similar ao das melhores escolas particulares. A constatação deveria ser o ponto de partida para uma revolução no ensino público destinada a equalizar por cima a qualidade da educação oferecida aos jovens. No lugar disso, a lei de cotas oculta o fracasso do ensino público, evitando o cotejo entre escolas públicas e privadas. Os "amigos do povo" asseguram, pela abolição do mérito, a continuidade do apartheid educacional brasileiro
O ingresso em massa de cotistas terá impacto devastador nas universidades federais. Por motivos óbvios, elas estão condenadas a espelhar o nível médio das escolas públicas que fornecerão 50% de seus graduandos. Hoje quase todos os reitores das federais funcionam como meros despachantes do poder de turno. Mesmo assim, eles alertam para os efeitos do populismo sem freios. O Brasil queima a meta da excelência na pira de sacrifício dos interesses de curto prazo de sua elite política. Os "amigos do povo" convertem o ensino público superior em ferramenta de mistificação ideológica e fabricação de clientelas eleitorais.
No STF, durante o julgamento das cotas raciais, Marco Aurélio Mello pediu a "generalização" das políticas de cotas. A "lei Lobão" atende ao apelo do juiz que, como seus pares, fulminou o artigo 208 da Constituição, no qual está consagrado o princípio do mérito para o acesso ao ensino superior. Mas a virtual abolição do princípio surtirá efeitos em cascata na esfera do funcionalismo público, que interessa crucialmente à elite política. As próximas leis de cotas tratarão de desmoralizar os concursos públicos nos processos de contratação, nos diversos níveis de governo.
A meritocracia é o alicerce que sustenta as modernas burocracias estatais, traçando limites ao aparelhamento político da administração pública. Escandalosamente, a elite política brasileira reserva para si a prerrogativa de nomear os ocupantes de centenas de milhares de cargos de livre provimento, uma fonte inigualável de poder e corrupção. A ofensiva dos "amigos do povo" contra o princípio do mérito tem a finalidade indireta, mas estratégica, de perpetuar e estender o controle dos partidos sobre a administração pública.
O país do patrimonialismo, do clientelismo, dos amigos e dos favores moderniza sua própria tradição ao se desvencilhar de um efêmero flerte com o princípio do mérito.

Demetrio Magnoli

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