Translate

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

VISÃO DO MÉDICO

Dr. Miguel Srougi - (enviado pelo Pierre)

SOFRIMENTOS E PRIVILÉGIOS 

 Eu me envolvo muito com meus pacientes. Sofro muito. E esse sofrimento é um dos fatores do sucesso da minha carreira, de 35 anos. Nesse sofrimento eu acabo me entregando mais e mais aos doentes. Isso é ruim, porque não tenho vida pessoal, minha vida familiar é feita nos intervalos. Felizmente, os momentos bons prevalecem sobre os ruins. É por isso que eu sobrevivo. Um doente que coloca a cabeça no meu ombro e agradece por ter feito algo por ele, ou deixa correr uma lágrima na minha frente, me faz deletar, superar aqueles momentos em que me senti totalmente impotente. Uma das coisas importantes é o médico saber e demonstrar que a medicina não é infalível e ele não se sentir onipotente. O urologista tem um privilégio. O oncologista mexe com câncer avançado, já no fim do caminho - eu lido com o inicial. Eu consigo salvar muita gente. É um privilégio para mim.

 MEDO DA SEPARAÇÃO 

Nós não queremos morrer. Primeiro, pela incerteza do porvir. Segundo, porque a morte implica extinção e o ser humano não aceita a aniquilação. A nossa cabeça nasceu para ser imortal. A morte está relacionada com dor, sofrimento, à decadência física, à desfiguração, à perda do papel social, desamparo da família, perdas dos prazeres materiais, da independência. Mas a causa verdadeira é o nosso horror de nos separar das pessoas que amamos. Bem material não deixa ninguém feliz. Há tanta gente rica se suicidando, tomando droga para sair da realidade. Os médicos não compreendem isso. Se as pessoas têm medo de se afastar das pessoas do seu entorno, você precisa tratar o entorno também. Não é o médico que apóia o doente nas fases difíceis - é a família. Eles reagem raivosamente contra a família, querem afastá-la do processo, sem perceber que um doente só vai ter paz, tendo a morte pela frente ou não, se a família estiver ao lado.

 A SAÍDA DO SÍRIO-LIBANÊS

Os verdadeiros templos na Terra são os hospitais - não as igrejas. Nas igrejas tem muito ouro, riqueza. Aqui não, você conhece o sofrimento, o valor da existência humana. Os orgulhosos e os soberbos ficam humildes, ricos e pobres são iguais; os ruins, os autoritários e os maldosos se tornam condescendentes: eles ficam despidos, tiram a máscara; é aqui que você conhece o que é viver, que resgata para a vida, não em uma igreja qualquer, que o sujeito entra lá, reza dez minutos e sai. Ele pode até sarar, cicatrizar a sua alma. Mas aqui nós curamos a alma e o corpo. Esse é o verdadeiro templo, onde o ouro é a vida. Você entende o impacto que a desigualdade social tem sobre o ser humano, a pobreza, a falta de instrução causa doenças. Depois de 30 anos no Sirio-Libanês eu mudei para o Oswaldo Cruz. Achar que eu vou ter novas salas, três enfermeiras a mais, é brutalizar o que passou pela minha cabeça. Mudei porque não estava vendo esse lugar como um templo.
Eu vivo intensamente, por isso tenho esses sentimentos. 

UM POUCO DE FILOSOFIA 

 A melhor forma de se transmitir as virtudes é pelo exemplo, pela coerência. Certa vez perguntaram para Sócrates como a virtude poderia ser transmitida - se pelas palavras ou conquistada pela prática. Ele não soube responder. Então, Aristóteles, depois de uns anos, respondeu: "A virtude só pode ser transmitida pela prática e por meio do exemplo". Aqui, eu posso tentar ser o exemplo. Mudando o cotidiano das pessoas, transformando a sociedade e construindo um novo mundo.

Miguel Srougi

Um comentário:

marcos.caravalho disse...

Sou testemunha agradecida da simplicidade e competência do Dr. Miguel: operou meu pai, que ia pelos 70 e tantos na época - anos 90. Deu-lhe sobrevida infinita: seu Olavo não morreu de câncer. Já era então figuraça carimbada (cotado para Ministro da Saúde do Serra, se o carequinha ganhasse aquela). Atendia pessoalmente todos seus clientes. Nada de mandar o assistente fazer a consulta e passar pela sala só no finalzinho - "como vai o sr? foi bem atendido?" - só para justificar a facada no talão de cheques do paciente.
Não controlava/cobrava consulta pelo horímetro: gastava o tempo que fosse necessário para explicar didáticamente, sem mediquês e sem insultar a inteligência do paciente as alternativas e as chances desse ou daquele tratamento. Um não-argentário. "Passava visita" pessoalmente depois da cirurgia, não mandava representante. O tempo todo lá: vivo, ao vivo, em cores, bigode e cabelos ainda pretos Grande figura. Continua sendo.

PS: Na época, existia um outro bam-bam-bam da urologia paulistana. Pontificava no Sírio(onde o Dr. Miguel operava). A soberba a desfilar sobre duas pernas. Vivia nas Folhas e na TV. Clareando com um tostão de sua sabedoria tudo que roçasse a parte baixa do nosso abdôme. Nós, reles e ignaros mortais. Ví-o um dia, eu chegando prá visitar meu pai, êle saindo: narigão empinado, ar blasé (aprés moi, le déluge..), as duas mãos nos bolsos do jaleco branco impecável ("vai que alguém queira pegar na minha mão para me cumprimentar por mais um sucesso cirúrgico, credo!!"), gravatão com nó tipo repolho, seda pura, logotipão no bolsinho do jaleco (inscrição: Professor Doutor Fulano de Tal). Séquito de puxa-sacos sorridentes e babosos. Uns, um passo ao lado;outros, outro passo atrás.
Pastel de vento, sim senhô!
Por oposição: viva o Dr. Miguel!