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sábado, 13 de novembro de 2010

TRECHO DE CARTA AO NETO

Caro neto,

"...Só sei que recordar é bom, e é das poucas possibilidades que me restam, de modo que recordo. É uma espécie de exercício emocional, é um estímulo para os meus cansados neurônios, mas é sobretudo um prazer. Um prazer melancólico, decerto, mas um prazer, sim, resultante da facilidade com que evoco pessoas, acontecimentos, lugares, uma facilidade que às vezes surpreende a mim próprio. Para alguns, mesmo não muito velhos, o rio da memória é um curso de água barrenta que flui, lento e ominoso, trazendo destroços, detritos, cadáveres, resto disso ou daquilo; para mim, não: é uma vigorosa corrente de água límpida e fresca. Dos barquinhos que nela alegres navegam, lembranças, às vezes melancólicas, mas em geral risonhas, acenam-me, gentis, amistosas. Estou falando, claro, de memórias remotas, daquelas que estão ligadas à minha juventude. As coisas do cotidiano, eu as esqueço com a maior facilidade. Esqueço de apagar a luz, esqueço onde larguei o relógio, esqueço de dar descarga no vaso sanitário, esqueço até os nomes das pessoas da casa geriátrica onde resido - por opção minha, devo dizer: meus filhos prefeririam que eu continuasse no apartamento, ou então que fosse morar com eles, coisa que recusei: não quero dar trabalho a ninguém..."

(Moacyr Scliar - Trecho do "Eu vos abraço, milhões")

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